tag:blogger.com,1999:blog-52096911336522542662024-03-05T09:46:05.152-03:00gmouraoMourãohttp://www.blogger.com/profile/13943568185855686759noreply@blogger.comBlogger239125tag:blogger.com,1999:blog-5209691133652254266.post-90408692190592758022019-05-17T18:35:00.000-03:002019-05-17T18:35:19.252-03:00O velho se abaixou, pegou num ramo alto do mato e arrancou. Pensou um pouco se punha ele na boca pra mascar, mas não, só jogou fora por cima do ombro, um mato inútil que se não fosse arrancado tomaria todo o rancho. Olhou para a filha e suspirou.<br />
— Esse frio faz mal pra você, pai. Aqui parece que é sempre úmido demais, sempre frio demais.<br />
— Você não se incomodava antes.<br />
— Eu era criança antes. Não conhecia mais nada além desse fim de mundo.<br />
— Você foi pra cidade e ficou frouxa.<br />
Ele se arrependeu de ter jogado fora aquele mato, queria alguma coisa na boca. Tirou um pouco de fumo do bolso e começou a enrolar um cigarro. Antes de acabar, levantou a cabeça e respirou fundo. A plantação não ia mal, mas por quanto tempo ele ainda daria conta de cuidar da terra?<br />
Desde o dia em que a filha anunciou sua ida a Curitiba para fazer faculdade, ele soube que ela não ia voltar, mas sempre mantivera alguma esperança de que as dores da cidade pudessem fazê-la mudar de ideia. Talvez até arrumasse um marido interessado no cultivo de trigo. Mas a faculdade passou, veio um mestrado e nem ela mudou de ideia sobre morar no campo, nem muito menos se casou. Dois anos antes, apareceu na casa do pai com uma amiga. Sentaram à mesa e a filha olhou para o pai em silêncio por muitos minutos, a todo instante respirando como se fosse dizer alguma coisa, até que se despediu e voltou para Curitiba sem ter dito nada nem terminado o café.<br />
O velho só ligava para o trigo. Queria que a filha fosse feliz do jeito dela, mas por que o jeito dela não podia ser ficar por ali e cuidar da plantação? Terminou de enrolar o cigarro, colocou na boca e lembrou que não tinha fogo. Também não importava, só queria mesmo era algo selando os lábios.<br />
— Eu me preocupo com você, pai. Eu tenho um apartamento grande, você podia morar comigo. Se não quiser, pode morar em outro lugar, também, eu consigo te manter lá. Não vai ser problema nenhum, pelo contrário, vou gostar de te ter por perto. — O pai não deu sinal de que tivesse ouvido. — Eu te faço broa, papai, juro.<br />
Ele sorriu. Afinal, fizeram um bom trabalho com a menina. E ela virou uma mulher boa.<br />
— Essa terra sempre cuidou de mim. Nunca me deixou faltar nada. Não vai ser agora que vai faltar. — Olhou ao redor. — Pra você fazer broa, alguém tem que plantar o trigo.<br />
A filha se deixou ficar alguns passos para trás, mas não disse mais nada. O velho era por demais teimoso, não adiantava falar. Havia enfiado na cabeça que tinha que morrer naquele mato e nada o convenceria do contrário. Mas por quê aquele lugar precisava ser tão úmido?<br />
— Você volta para a cidade. Você é nova demais, tem pressa demais. Talvez aqui não seja mesmo lugar pra você. Mas é o único lugar pra mim.<br />
A filha abraçou o pai com muita força, mas não entendeu bem por que sentia vontade de fazer aquilo. Disse que voltaria logo e que traria broa. E então voltou para a casa, onde a mala esperava pronta, sem sequer ter sido desarrumada.<br />
O velho apertou o cigarro entre os lábios, andou sem pressa nenhuma morro acima. Quando chegou no topo, olhou a árvore retorcida e o balanço. Sentou na grama, diante da velha cruz de madeira que ele mesmo colocou ali tantos anos antes. — A gente fez um trabalho realmente muito bom com a menina.Mourãohttp://www.blogger.com/profile/13943568185855686759noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-5209691133652254266.post-25520144030868237042016-07-24T05:54:00.001-03:002016-07-24T12:54:51.327-03:00<div>
Subiu José aos céus e se prostrou na grande sala oval em que não havia lugar nenhum para sentar. Depois entrou Jesus, pediu desculpas pelo atraso, ofereceu que José se sentasse em uma cadeira que até então não estava ali.</div>
<div>
José se sentou e repassou mentalmente o discurso que tinha preparado. Achava que funcionaria; era coerente e, afinal, ele se sentia orgulhoso do resultado final.</div>
<div>
No dia da cirurgia, ele começou a falar, mas Jesus o interrompeu.</div>
<div>
Eu sei o que aconteceu.</div>
<div>
Só queria esclarecer que no dia da cirurgia eu estava... Você sabe. Eu estava muito, estava muito nervoso com ele. Quer dizer... Se eu tivesse descoberto antes... Acho que se eu tivesse descoberto antes ainda nem teria tanto problema, acho que eu conseguiria lidar com isso, mas foi no mesmo dia! Eu tinha acabado, acabado de descobrir o caso dos dois quando ele sofreu o acidente. Se eu fosse religioso (sem ofensa), teria achado que era alguma obra da Providência ou sei lá o quê. Que era uma forma de punição.</div>
<div>
Você acha que porque ele transou com a sua esposa eu causaria um acidente de carro com três vitimas fatais e deixaria justamente ele vivo, disse Jesus. Não era uma pergunta.</div>
<div>
Se eu fosse religioso. José deu de ombros. Sem ofensa. De qualquer jeito, a operação começou normal, mas ele estava realmente muito mal. Não foi culpa minha que as coisas desandaram.</div>
<div>
Se você diz.</div>
<div>
Digo. E aí, você sabe, eu estava ali, e ele estava com a barriga aberta e tinha uma placa de alumínio ainda enfiada no peito. Ninguém poderia achar estranho se ele morresse.</div>
<div>
Se você diz, repetiu.</div>
<div>
Digo, digo. Na verdade, tudo o que eu precisava fazer era... E eu estava muito nervoso! Eu estava puto! E tudo o que eu precisava fazer era...</div>
<div>
Nada.</div>
<div>
Isso. Eu só precisava não salvar ele. Eu até podia tentar. Muita gente tentaria e ainda assim ele morreria. Eu podia tentar, ou fingir que tentei, e ele morreria e eu teria minha vingança e ninguém nunca me culparia por isso.</div>
<div>
Mas não foi isso o que você fez.</div>
<div>
Não foi.</div>
<div>
Você se desdobrou e conseguiu estabilizar os sangramentos e tirar a placa do peito dele.</div>
<div>
Foi.</div>
<div>
E então ele se salvou e saiu do hospital sem imaginar que você sabia do caso com a sua esposa.</div>
<div>
E até hoje não sabe.</div>
<div>
E no entanto você veio até aqui e achou relevante me contar essa história hoje.</div>
<div>
É só porque eu achei que... Você sabe. Por causa da triagem.</div>
<div>
Você salvou a vida dele, mesmo querendo não salvar. Você sabia que pouco importava para o mundo e os cosmos ou o que quer que seja em que você acredita, mas para você era importante que ele vivesse. Para você poder ter essa conversa hoje, por exemplo (se você fosse religioso), ou para você poder continuar olhando para a sua esposa com a mesma certeza de que ela pecou, ela foi injusta com você de alguma forma, mas você não tinha nada de que se desculpar.</div>
<div>
Eu fiz o que era certo.</div>
<div>
Fez. Por outro lado, você não quis fazer. Se você tivesse um pouco mais de coragem... Na verdade, se essa situação se repetisse cinqüenta vezes, acho que em metade delas você deixaria ele morrer. Talvez em sessenta ou setenta por cento das vezes.</div>
<div>
Você não tem como saber.</div>
<div>
Na verdade, eu tenho. Posso fazer com que você passe por essa mesma situação cinqüenta, cem, infinitas vezes.</div>
<div>
Bom, mas isso, isso não importa. O que importa é o que realmente aconteceu, quero dizer, o resultado final das minhas ações. </div>
<div>
Aí é que você se engana. Estamos separando pecadores de não pecadores. Qualquer abstração tem que ficar fora dessa conversa, mas a questão também não é tão simples assim. Eu não quero saber o que você fez, mas o que você é. Se você quer saber, você acertou em uma coisa. Para os cosmos, não importa. Um homem sobreviveu naquela noite e ele poderia ter morrido e o mundo não seria diferente. Você sabe disso, é claro. Se essas situações importam, não é pelo seu impacto efetivo,mas pelo que elas dizem de você, dele, das pessoas envolvidas.</div>
<div>
Certo.</div>
<div>
Eu preciso separar os pecadores dos não pecadores. Então o que eu faço? Eu vejo as pessoas que vêm até aqui. Vejo mesmo. Por dentro, sabe? Eu olho para o fundo da alma delas e vejo se existe pecado lá.</div>
<div>
Parece um trabalho fácil. Quer dizer, pra você e tal.</div>
<div>
É um trabalho fácil, pra mim, e é mais fácil ainda pras pessoas que vêm aqui. Vamos lá: eu olho pra você e o que eu vejo? O homicídio está dentro de você? Matar um homem, ou deixar ele morre (pra mim tanto faz) mas matar um homem é algo que faz parte de você? Ou foi alguma incompatibilidade profunda, algo intrínseco ao que você é, que te fez ser tão diligente na cirurgia? Lembre-se de que esse é um julgamento moral. Para alguém que não se importa com o resultado prático dos seus atos no mundo, você já tinha pecado muito antes de decidir se ia ou não deixar ele morrer?</div>
<div>
José não falou nada. Jesus andou até uma das extremidades da sala, e parou entre duas portas. José sabia que a da esquerda era a porta do céu e que atrás dela estavam todas as delícias reservadas às pessoas puras, e que a da direita era a porta do inferno, que levava às agruras destinadas aos pecadores e às pessoas ruins. Fora isso, elas eram exatamente iguais.</div>
<div>
Jesus não abriu nenhuma das duas. Ele não precisava. José se levantou e andou até Jesus e pensou em dizer alguma coisa ou em abraçá-lo ou qualquer outra coisa, mas no último minuto mudou de ideia, baixou os olhos, seguiu reto.</div>
<div>
Pela grande, pesada e inexorável porta pela qual lhe cabia passar.</div>
Mourãohttp://www.blogger.com/profile/13943568185855686759noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-5209691133652254266.post-75822828642284217042016-07-20T01:49:00.001-03:002016-07-20T01:49:20.393-03:00Olho distraído, distraído porque faço outras coisas, coloco os pratos na máquina, rego meu pé de sálvia, cuido da minha vida, enfim, olho e meu olhar se depara com a janela que dá para a rua e eu instintivamente procuro o imenso tanque de aço maciço que deveria avançar em direção à Vergueiro, rodeado por milicianos deste ou daquele lado, todos muito festivos com suas bandeirolas dessa ou daquela cor e cantando hinos e incitando as pessoas das casas a se juntarem a elas, supondo que já tenham terminado com a louça ou a sálvia. Na Vergueiro estariam já outros tantos tanques, e porque moro perto eu penso que deveria ser capaz de ouvir os tiros dos canhões, as dinamites, o grito assustado das pessoas correndo rua abaixo e se deparando com o tanque e os milicianos em festa.<br />Mais abaixo, na praça, ocupando a quadra onde em outros tempos alguém jogaria futebol ou soltaria o cachorro para correr um pouco, imagino os outros jovens, talvez com porte menos atlético e ar mais intelectual, lendo textos muito antigos ou muito novos em voz alta para as pessoas ao redor, chamando-as para a ação. Mesmo as pessoas que estejam na praça apenas porque queriam soltar seus cachorros certamente se comovem, talvez não pelo texto, que afinal é um pouco antigo, mas sim pelo fato de estarem os tanques nas ruas e por todo o resto, as certezas todas se desmantelando sob os aviões bombardeiros e os tiros de metralhadora.<br />A essa altura, tenho certeza de que uma menina vai vir correndo da praça, subir a rua a despeito de os tanques serem todos inimigos (no fim, todos os tanques são inimigos, porque ela é uma pacifista convicta), vai gritar em resposta para os milicianos que naturalmente não teriam como ouvir nada e então ela vai olhar para cima na esperança de encontrar ajuda e seus olhos encontrarão nada mais nada menos que os meus próprios, um pouco distraídos com a louça, mas ainda assim capturados pela cena e pela rua e pela janela. Eu também não ouviria nada do que ela diria, mas saberia que era importante, ciente dos tanques e dos tiros e dos aviões.<br />No fim, não havia nada de inocente no meu ato de estar distraído e me deparar de repente com a janela, era tudo absolutamente programado para eu testemunhar um ato qualquer de coragem que me tirasse da janela, talvez não sem antes regar também a pitangueira e o coentro, e descer para a rua para combater também os milicianos com suas dinamites, na esperança de conservar um mínimo de normalidade no mundo, evitar que aquelas pessoas todas a destruíssem a tiros.<br />Mas não tem tanque nenhum subindo a Machado de Assis. Se alguém está atirando na Vergueiro, daqui eu não ouço nada. <br />Talvez eu tenha entendido tudo errado.<br />Talvez seja justamente a normalidade que eu deveria sacudir das pessoas na rua, trazer eu mesmo os tanques, lançar minhas próprias dinamites. <br />Nem que fosse só pra deixar o mundo um pouquinho mais coerente.Mourãohttp://www.blogger.com/profile/13943568185855686759noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-5209691133652254266.post-12720529945699836382015-12-10T01:47:00.000-02:002016-07-20T01:48:35.064-03:00Passado<div style="line-height: 100%; margin-bottom: 0cm;">
Meus amigos são todos ricos. Ou então são pobres por opção, quiseram fazer o que
lhes desse na telha, foram lá, fizeram. Têm hoje, eles todos, a
profissão que terão pelo resto da vida: não lhes preocupa a
perspectiva de uma promoção, um aumento, não lhes interessa fazer
um mestrado (mas fazem!), porque já são ricos ou escolheram ser
pobres, não dividem seu tempo em um milhão de atividades
desconexas, incompatíveis, impossíveis, não sentam-se à noite
cansados e se perguntam se vão dedicar as horas livres (que têm) a
isso ou àquilo, porque são coerentes, não se perguntam às vezes o
que diabo estão fazendo com suas vidas, não fazem planos de começar
qualquer coisa em um ou dois anos, porque já começaram tudo, é
claro, estão agora em vias de realizar, cumprir, às vezes até
terminar, e não sentem que metade das suas atividades é um atraso
injustificável à outra metade, sem no entanto saber em qual metade
deveriam estar avançando e qual metade os está segurando para trás,
não desperdiçam ainda mais tempo escrevendo devaneios, muito menos
se culpam quando não os escrevem. Meus amigos todos venceram na
vida.</div>
<div style="line-height: 100%; margin-bottom: 0cm;">
Um dia, eu já fui
destinado também à vitória. Um dia eu estive fadado a ter tudo
aquilo que o Universo tinha em reserva, e não era pouco, porque eu
unia as oportunidades à competência, digamos assim, como quem une o
útil ao agradável, a fome à vontade de comer, as asas com o saber
voar, inclusive era da comunidade do Orkut, Já Tive um Futuro
Promissor, ou algo assim, e também da Provo Teses Com Comunidades,
que aliás vem a calhar, mas divago, acontece que um dia aconteceu
alguma coisa, já nem sei, deve ter acontecido, porque de repente
(não mais que de repente) eu já não tinha mais coisa nenhuma, não
era nada daquilo que meus amigos são, era uma criatura dividida em
mil outras, nenhuma se dando com as demais, nenhuma sabendo o que
fazer com as demais, sem nenhum plano de metas, nenhum compromisso
com futuro nenhum nem apetite, ou talvez fosse o contrário, um
apetite grande demais, que não cabia na minha fome, nas minhas asas,
no meu Orkut. Eu também um dia fui destinado a vencer na vida.</div>
<div style="line-height: 100%; margin-bottom: 0cm;">
Hoje estou destinado
a muito mais.</div>
Mourãohttp://www.blogger.com/profile/13943568185855686759noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-5209691133652254266.post-27496284371934119752015-06-25T02:00:00.000-03:002015-06-25T02:11:04.411-03:00Futuro<style type="text/css">p { margin-bottom: 0.08in; direction: ltr; color: rgb(0, 0, 0); widows: 2; orphans: 2; }</style>
<br />
<div align="left" style="font-style: normal; font-variant: normal; font-weight: normal; line-height: 115%; margin-bottom: 0.14in; text-decoration: none;">
<span style="font-family: Calibri, serif;"><span style="font-size: small;">Não
se preocupem, queridos, que eu tenho tudo planejado. O que acontece,
na verdade, é que o futuro se anuncia tão possível que não posso
deixar de me perguntar se o Mundo é mesmo grande assim, se a gente
pode mesmo tanto. </span></span>
</div>
<div align="left" style="font-style: normal; font-variant: normal; font-weight: normal; line-height: 115%; margin-bottom: 0.14in; text-decoration: none;">
<span style="font-family: Calibri, serif;"><span style="font-size: small;">Sempre
achei que não podia nada. Não era um juízo da minha competência,
mas da competência da vida: as coisas sempre me pareceram possíveis
somente sob a bénção e a vigília de outra pessoa. </span></span>
</div>
<div align="left" style="font-style: normal; font-variant: normal; font-weight: normal; line-height: 115%; margin-bottom: 0.14in; text-decoration: none;">
<span style="font-family: Calibri, serif;"><span style="font-size: small;">Eu
me lembro, me lembro muito bem, de, pequeno, ter visto alpinistas. Na
TV, claro, alpinistas subindo uma montanha impossível, virgem. Me
lembro tão bem que, agora, penso ter inventado tudo. Mas, inventados
ou não, os alpinistas subiam sem amparo nenhum, os equipamentos
inúteis diante da falta de alguém que tivesse subido antes,
amarrado os ganchos, prendido os cabos. Aquilo me deu um nó em
algumas ideias então já bem definidas -- de que não se poderia
subir uma montanha sem ganchos e cabos --, e minha mente de criança
tratou de reinventar o mundo, refazer a regra, eliminar a
idiossincrasia do episódio e adequá-lo ao que eu sabia da vida:
aqueles eram profissionais dotados de uma espécie de autoridade que
lhes permitia fazer algo que a outros humanos não seria facultado.
Subiam, portanto, prendiam os ganchos, estiravam os cabos e tornavam
lícito que outros fossem atrás e mimetizassem o feito.</span></span></div>
<div align="left" style="font-style: normal; font-variant: normal; font-weight: normal; line-height: 115%; margin-bottom: 0.14in; text-decoration: none;">
<span style="font-family: Calibri, serif;"><span style="font-size: small;">Experiências
do mesmo tipo me aconteceram tantas vezes depois que é impossível
pretender relatá-las todas. Acho que por isso mesmo nunca fiz um
curso de mergulho (o mar me aceitaria?), nunca me dispus a falar
sobre alguns assuntos e, até hoje, ainda sinto algum grau de culpa
toda vez que durmo fora de casa.</span></span></div>
<div align="left" style="font-style: normal; font-variant: normal; font-weight: normal; line-height: 115%; margin-bottom: 0.14in; text-decoration: none;">
<span style="font-family: Calibri, serif;"><span style="font-size: small;">Não
foi, também, que tenha sofrido restrições em excesso, que tenha
vivido sob regras muito rígidas. Muito pelo contrário, aliás, tudo
sempre me foi permitido. Também nunca fui propriamente vigiado. Não
tenho a quem ou por quê culpar.</span></span></div>
<div align="left" style="font-style: normal; font-variant: normal; font-weight: normal; line-height: 115%; margin-bottom: 0.14in; text-decoration: none;">
<span style="font-family: Calibri, serif;"><span style="font-size: small;">Falei
em vigília, porém, e não menti: sempre tive alguém que olhasse
por mim; sempre estive protegido. É desnecessário dizer que sempre
contei com pessoas que fizessem as coisas por mim, que se
desdobrassem para que eu não precisasse me desdobrar, mas não é só
isso, também, o que eu quero dizer. Este é o desabafo de uma
criança mimada, é claro, mas espero que seja um pouco mais do que
isso. O fato é que eu nunca precisei correr riscos e, por isso,
acreditei que ninguém mais o fizesse. Acreditei que se alguém
escala uma montanha pela primeira vez, colocando pela primeira vez os
grampos que segurarão alpinistas futuros, então essa pessoa
certamente o faz com a proteção que lhes concede o título:
“Alpinista”. O que nunca me ocorreu é que, para alguém se
tornar alpinista, ela vai obrigatoriamente ter que escalar suas
montanhas. O que nunca me ocorreu é que ninguém nunca veio a essas
pessoas e concedeu-lhes o alvará: vamos!, suba!, a partir de agora,
você é um alpinista. Acho que, até hoje, eu vinha esperando que
alguém viesse com esse alvará. </span></span>
</div>
<div align="left" style="font-style: normal; font-variant: normal; font-weight: normal; line-height: 115%; margin-bottom: 0.14in; text-decoration: none;">
<span style="font-family: Calibri, serif;"><span style="font-size: small;">Não
é de se espantar, então, que o futuro me pareça tão impossível,
ainda mais agora que está chegando. E, no entanto, tenho tudo, tudo planejado.</span></span></div>
Mourãohttp://www.blogger.com/profile/13943568185855686759noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-5209691133652254266.post-88839770068997351252014-11-11T01:57:00.000-02:002015-06-25T02:10:12.183-03:00PresenteHoje em dia, eu voltei a ter medo do escuro. Medo do que há debaixo da minha cama. Medo do que há escondido no corredor. <br />
E
com o medo deveria vir a vergonha do medo, porque adultos podem ser
paranóicos, se quiserem, podem instalar antivírus, trocar a senha do
cartão, comprar um segundo celular, tudo dentro de um grande contexto de
adultês ou adultério, conforme o caso, mas de todo modo tudo isso
lícito, mas não podem ter medo do escuro, não podem de jeito nenhum
pular para o mais longe que puderem da cama, de modo a fugirem do que
quer que se esconda ali. Mas eu sinto medo que nem uma criança e muito
francamente não sinto vergonha nenhuma, escrevo aqui, inclusive, o que
não me impede de me perguntar de vez em quando por que eu fui voltar a
ter medo do escuro - justo agora, eu quero dizer. <br />
Tem outra
coisa, aliás, outra coisa que resolveu me assolar agora, mas essa eu sei
bem de onde vem, uma espécie de culpa ou raiva ou ambas, culpa que vira
raiva que vira: efeito colateral grave mas delicioso de enfim me tornar
eu mesmo, enfim falar e fazer alguma coisa, tudo errado e tudo certo,
lendo tanto, também, lendo o tempo todo, e lendo também as coisas
erradas ou lendo errado as coisas certas. E tão infinitamente feliz!,
como nunca, talvez, antes!, tão cheio de mim e do mundo que eu às vezes
quero filmar tudo o que eu vejo e mostrar pra vocês!, escrever tudo o
que penso e mostrar pra vocês!, egocêntrico, talvez, mas não, mais
altruísta que egocêntrico: um mundo tão lindo quanto o que eu vejo todo
dia!, vocês mereciam ver também!: as flores no chão da ciclofaixa da Pedroso!, os grafites da José Queiroz Aranha!, aquele descascadinho no
móvel que às vezes me lembra a cabeça de um lobo!.Tudo vai bem portanto.<br />
Já era hora, afinal, de sentir medo de alguma coisa. Mourãohttp://www.blogger.com/profile/13943568185855686759noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-5209691133652254266.post-80202236961677764652014-07-09T01:31:00.002-03:002014-07-09T01:31:13.470-03:00<div>
Futebol é só futebol. No fim, é isso. Escrevo logo depois de o Brasil tomar 7 da Alemanha, uma derrota inédita na história da Seleção e na minha, o país ainda humilhado e atordoado, e afirmo sem medo de errar que é futebol, só, e nada mais.</div>
<br />
<div>
Me disseram isso antes da Copa: me falaram sobre a ilusão de um povo, sobre as mentiras dos poderosos, sobre o nacionalismo errado, mentiroso, hipócrita. Me disseram que fazer ou tomar 7, numa semi-final de Copa do Mundo ou na quadra do prédio --- me disseram que isso era nada.</div>
<div>
Em outro assunto: eu gosto de Literatura. Eu estudo, leio, às vezes até faço, acho, Literatura. E se você gosta de Literatura, você é meio que obrigado a aceitar que o futebol, como tudo o mais no mundo, seja um pouco mais que aquilo que é. Um pouco mais que, bem, futebol. </div>
<div>
Pra você gostar de Literatura, você tem que admitir que um mundo de fatos aleatórios e sem sentido não é suficiente. Você tem que entender que as pessoas atribuem significado às coisas não porque sejam fracas e carentes de algum tipo de conforto espiritual (não só por isso, pelo menos), mas porque a vida é triste se não for transcedental, porque a gente foi arremessado em um mundo hostil e nos foi imposto, a partir dele, construir significados.</div>
<div>
A gente tem perdido a capacidade de fazer isso. Acho que Weber falou sobre como o mundo fazia sentido para os homens de antigamente e sobre como, conforme nosso entendimento do universo foi aumentando, as coisas fugiram da nossa capacidade de compreensão. Que ele falou sobre como as religiões se esforçavam para explicar todos os elementos da natureza e para integrá-los em um sistema uno, e sobre como isso não acontece nas grandes religiões monoteístas. Walter Benjamin, falando sobre a morte da narrativa, diz algo muito parecido. Segundo ele, a partir da Primeira Guerra Mundial, o mundo se tornou grande demais para ser compreendido de forma coerente por um único indivíduo. Tratando da substituição da tradição da narrativa pela do romance, Benjamin conclui: "Com efeito, numa narrativa a pergunta - e o que aconteceu depois? - é plenamente justificada. O romance, ao contrário, não pode dar um único passo além daquele limite em que, escrevendo na parte inferior da página a palavra fim, convida o leitor a refletir sobre o sentido de uma vida."</div>
<div>
Mesmo assim, a gente tende a achar que as coisas são... mais do que coisas. As pessoas dizem que a organização e a civilidade alemã prevaleceram sobre a malandragem brasileira. Comparam Wagner e o Lepo Lepo, Merkel e Dilma. As pessoas falam como se o mundo amanhecerá amanhã diferente de hoje; diferente porque o Brasil foi derrotado, humilhado, massacrado em casa. Um professor uma vez sugeriu que, se a derrota em 1950 levou o Brasil a se consolidar como potência futebolística nas décadas seguintes, uma possível vitória em 2014 poderia afastar de vez nossa estigma de país do futebol. Talvez ele tenha alguma teoria para os efeitos do jogo de hoje.</div>
<div>
Mas, no fim, é só futebol. O fato de torcermos para as colônias contra os colonizadores não vai vingá-las; torcermos a favor ou contra o Brasil não vai nos aumentar como Nação. O torcedor vitorioso não vai acordar livre dos seus problemas no dia seguinte.</div>
<div>
É possível, evidentemente, viver sem esse tipo de... distração. Como é possível, claro, viver sem Música, sem Cinema, sem Literatura. Independentemente das teorias que criemos, a chuva cai lá fora, a entendamos ou não. Um dia, vai saber, a ciência vai explicar todos os fenômenos do mundo. Nesse dia, não precisaremos aprender nada com essa derrota.</div>
<div>
Até lá, é preciso viver.</div>
Mourãohttp://www.blogger.com/profile/13943568185855686759noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-5209691133652254266.post-55093866474476777732014-06-23T21:03:00.002-03:002014-06-23T21:03:08.688-03:00
<style type="text/css">p { margin-bottom: 0.1in; line-height: 120%; }</style>
<br />
<div lang="en-US" style="font-weight: normal; line-height: 100%; margin-bottom: 0in;">
<span style="color: black;"><span style="font-family: Georgia, serif;"><span style="font-size: x-small;">Eu
queria morar em Brasília</span></span></span></div>
<div lang="en-US" style="font-weight: normal; line-height: 100%; margin-bottom: 0in;">
<span style="color: black;"><span style="font-family: Georgia, serif;"><span style="font-size: x-small;">onde
os prédios são baixinhos</span></span></span></div>
<div lang="en-US" style="font-weight: normal; line-height: 100%; margin-bottom: 0in;">
<span style="color: black;"><span style="font-family: Georgia, serif;"><span style="font-size: x-small;">bem
pertinhos</span></span></span></div>
<div lang="en-US" style="font-weight: normal; line-height: 100%; margin-bottom: 0in;">
<span style="color: black;"><span style="font-family: Georgia, serif;"><span style="font-size: x-small;">e
queria morar em Paris</span></span></span></div>
<div lang="en-US" style="font-weight: normal; line-height: 100%; margin-bottom: 0in;">
<span style="color: black;"><span style="font-family: Georgia, serif;"><span style="font-size: x-small;">onde
já teve uma revolução</span></span></span></div>
<div lang="en-US" style="font-weight: normal; line-height: 100%; margin-bottom: 0in;">
<span style="color: black;"><span style="font-family: Georgia, serif;"><span style="font-size: x-small;">e
quem sabe não tem outra</span></span></span></div>
<div lang="en-US" style="font-weight: normal; line-height: 100%; margin-bottom: 0in;">
<span style="color: black;"><span style="font-family: Georgia, serif;"><span style="font-size: x-small;">Só
queria morar longe da inércia</span></span></span></div>
<div lang="en-US" style="font-weight: normal; line-height: 100%; margin-bottom: 0in;">
<span style="color: black;"><span style="font-family: Georgia, serif;"><span style="font-size: x-small;">da
inevitabilidade </span></span></span>
</div>
<div lang="en-US" style="font-weight: normal; line-height: 100%; margin-bottom: 0in;">
<span style="color: black;"><span style="font-family: Georgia, serif;"><span style="font-size: x-small;">da
vida</span></span></span></div>
<div lang="en-US" style="font-weight: normal; line-height: 100%; margin-bottom: 0in;">
<span style="color: black;"><span style="font-family: Georgia, serif;"><span style="font-size: x-small;">onde
ainda resistam os espíritos da terra</span></span></span></div>
<div lang="en-US" style="font-weight: normal; line-height: 100%; margin-bottom: 0in;">
<span style="color: black;"><span style="font-family: Georgia, serif;"><span style="font-size: x-small;">e
se possa voar quando ninguém olha</span></span></span></div>
<div lang="en-US" style="font-weight: normal; line-height: 100%; margin-bottom: 0in;">
<span style="color: black;"><span style="font-family: Georgia, serif;"><span style="font-size: x-small;">Eu
queria morar em Brasília</span></span></span></div>
<div lang="en-US" style="font-weight: normal; line-height: 100%; margin-bottom: 0in;">
<span style="color: black;"><span style="font-family: Georgia, serif;"><span style="font-size: x-small;">onde
já teve uma revolução</span></span></span></div>
<div lang="en-US" style="font-weight: normal; line-height: 100%; margin-bottom: 0in;">
<span style="color: black;"><span style="font-family: Georgia, serif;"><span style="font-size: x-small;">e
quem sabe não tem outra.</span></span></span></div>
<div lang="en-US" style="font-weight: normal; line-height: 100%; margin-bottom: 0in;">
<br />
</div>
Mourãohttp://www.blogger.com/profile/13943568185855686759noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-5209691133652254266.post-53392325737335824522014-06-10T01:15:00.000-03:002014-06-10T01:15:37.259-03:00<span style="background-color: rgba(255, 255, 255, 0); font-weight: bold;">1.</span><br />
<div style="min-height: 14px;">
<span style="background-color: rgba(255, 255, 255, 0);"><br /></span></div>
<span style="background-color: rgba(255, 255, 255, 0);">Há muito, muito tempo, mesmo, em uma vila de pescadores, havia um dragão. Os homens e as mulheres, porque naquela vila os gêneros não determinavam a função da pessoa, saíam de manhã para o mar e suas redes voltavam sempre cheias de peixes que eles assavam nas chamas fartas de fogueiras coletivas, e sempre havia música e comida em abundância. Os trabalhos eram divididos e a comida também. Quem não podia pescar, ou não queria, porque naquela vila as pessoas eram relativamente livres para fazer suas escolhas, se ocupava de cuidar das crianças e ensiná-las, de proteger as casas contra animais selvagens, de fazer os reparos necessários nas construções, de fazer arte, de cuidar dos doentes, de fazer estradas, de construir embarcações ou o que mais fosse necessário. E evidentemente algumas pessoas optavam por não fazer nada e apenas se beneficiar do trabalho alheio, o que também era possível naquela vila, mas a maioria das pessoas simplesmente não queria isso, ou pelo menos não na maioria dos dias. De um modo geral, era uma vila harmoniosa e funcional, cujos poucos desentendimentos ocasionais eram prontamente solucionados por um grupo, eleito entre todos os moradores e representativo tanto dos interesses das maiorias quanto das necessidades das minorias, equivalente ao que nós habitualmente chamamos ou deveríamos chamar Judiciário. Mas o dragão era um problema.</span><br />
<span style="background-color: rgba(255, 255, 255, 0);">Ele dormia em uma montanha próxima, uma montanha cujo cume era coberto de gelo em todos os meses do ano, mesmo quando o povo lá em baixo ardia sob o sol, mas a cada quinze dias, ou um pouco mais, se o tempo fosse bom e o ar estivesse calmo, ou então um pouco menos, quando chovia muito ou as ventanias vinham do sul, ele acordava. Voava por sobre a vila, destruindo casas com seu fogo, afundando barcos de pescadores ou mesmo caçando pessoas para comer. Se ocupava dessas malfeitorias por um mês, ou um pouco mais, caso estivesse bem disposto, e de qualquer modo nunca menos do que isso, e então batia as asas novamente em direção à montanha, onde se acomodava para dormir, inocente, por mais quinze dias, ou um pouco mais, ou um pouco menos.</span><br />
<span style="background-color: rgba(255, 255, 255, 0);">Os moradores da vila se incomodavam muito com esse infortúnio, mas durante muito tempo não fizeram nada a respeito, porque acreditavam que o bicho podia um dia simplesmente ir embora ou morrer de velho. Ninguém sabia muito bem por quanto tempo vivia um dragão, já que não conheciam nenhum outro, pelo quê eram gratos, e aquele nunca havia morrido, pelo quê lamentavam e porque não lhes parecia muito fácil matar uma monstruosidade daquelas. Um dia , porém, um grupo de pessoas, eleito entre todos os moradores e atento tanto aos clamores das maiorias quanto ao silêncio das minorias, equivalente ao que nós habitualmente chamamos ou deveríamos chamar Executivo, decidiu que era hora de fazer alguma coisa.</span><br />
<span style="background-color: rgba(255, 255, 255, 0);">Assim, como era o costume do lugar, todos os moradores se juntaram e saíram em direção à montanha, exceto por aqueles que não podiam fazer a viagem, por motivo de saúde, idade ou presença de deficiência motora, e por aqueles que optaram por não ir, o que também era possível naquela vila. No fim das contas, cerca de metade da vila saiu naquele dia e caminhou pela pradaria em direção à montanha, levando consigo apenas algumas ferramentas básicas, umas poucas trocas de roupa e alguma comida.</span><br />
<span style="background-color: rgba(255, 255, 255, 0);">Enquanto caminhavam, uma pessoa foi mordida por uma cobra peçonhenta e morreu ainda na mesma noite, após horas ardendo em febre. Enquanto escalavam a montanha, três pessoas se feriram com graus diferentes de seriedade e decidiram voltar à vila, julgando-se, com ou sem razão, impossibilitadas de seguir a viagem. E a elas se juntaram as outras tantas que se cansaram, se amedrontaram ou por qualquer outro motivo desistiram de seguir viagem em direção ao cume, de modo que três sétimos da vila, apenas, chegaram ao ninho onde o dragão dormia, inocente. Essas pessoas se viram, então, diante de uma criatura de dimensões colossais, de escamas impenetráveis, cuja respiração era capaz de aquecer todo o ar em um raio de cerca de quinze metros, e constataram sem grande surpresa que a tarefa de executar um dragão não seria simples. </span><br />
<span style="background-color: rgba(255, 255, 255, 0);">Nessa vila, porém, as decisões não eram tomadas precipitadamente, de forma que muito já havia sido deliberado acerca de como seria o curso de ação para cumprir a missão de eliminar a terrível ameaça. Para começar, haviam concluído que o ideal seria aniquilar a fera em apenas um golpe, evitando-se assim o inconveniente de o animal acordar e começar a fazer coisas desagradáveis, como se defender ou, o que a opinião geral havia reconhecido como muito pior, contratacar. Uma pessoa observou que seria difícil subir a montanha levando armamentos, também porque aquela era uma vila de tendências pacíficas que nunca havia dedicado grandes esforços à indústria bélica. Outra pessoa sugeriu que uma alternativa seria simplesmente empurrar o dragão montanha abaixo, deixando seu próprio peso e a gravidade cuidarem do serviço. A proposta tinha a vantagem de dispensar equipamentos cujo transporte seria inconveniente, mas foi rapidamente rechaçada pelo grupo, que supôs que o dragão provavelmente acordaria durante a queda e, acordado, não teria dificuldade para simplesmente agitar as asas e voar montanha acima ou mesmo em direção à vila. Outra sugestão consistia em introduzir --- pela boca, pelas narinas ou por onde fosse possível --- pólvora e combustíveis variados no dragão, para posterior explosão da criatura. Essa ideia, porém, também não resistiu à sabatina, visto que considerou-se, com muita pertinência, que introduzir materiais inflamáveis ou explosivos em uma criatura basicamente constituída de fogo seria uma tarefa inglória. Finalmente, o consenso geral foi o de que o dragão deveria ser acorrentado --- da maneira mais sutil que os habitantes da vila pudessem fazê-lo (e os habitantes daquela vila, ou ao menos alguns deles, sabiam ser bastante sutis, visto que se empenhavam a toda variedade de processos artísticos ou científicos que exigiam grande precisão) --- até que não houvesse chance de escapar, e, então, o grupo poderia se posicionar em local seguro e atacá-lo com as ferramentas de que dispusesse, ou, ainda, embora esse fosse um ato de crueldade que contrariava a moral da maioria dos habitantes daquela vila, deixá-lo lá, incapaz de levantar voo ou caçar, até que ele morresse de fome, de sede ou nas mãos de quaisquer predadores que ousassem se aproveitar de sua impotência.</span><br />
<span style="background-color: rgba(255, 255, 255, 0);">Assim, em resumo, os moradores da vila que resistiram à viagem se encontraram finalmente diante daquela criatura de dimensões colossais, que respirava fogo e os amedrontava mesmo em seu sono, cientes da dificuldade da tarefa que lhes cabia, mas dotados de um plano. O grupo se organizou então de modo a que todas as partes desse plano pudessem ser executadas adequada e simultaneamente, e passou a se ocupar da colocação das correntes que deviam ser inicialmente presas a porções rochosas da montanha (e não a árvores ou a pedras que pudessem ser posteriormente carbonizadas ou movidas, respectivamente, pelo dragão) e depois cuidadosamente passadas por sobre o animal, com o cuidado de imobilizarem-se todos os membros e articulações (as do rabo despertando particular preocupação); da fixação, por cima das asas do bicho, de uma rede feita com grandes tiras de couro; de vestir por sobre os olhos do dragão uma imensa venda que lhe retirasse totalmente a visão; de amarrar-lhe o maxilar, dificultando que ele voltasse a exibir os dentes ou soprar fogo sobre quem quer que fosse.</span><br />
<span style="background-color: rgba(255, 255, 255, 0);">A execução dessas tarefas se deu, de um modo geral, com grande precisão e cuidado, mas, de todo modo, os eventuais erros decorrentes da inépcia de alguns dos habitantes daquela vila ou do simples nervosismo causado pela proximidade com aquela criatura terrível foram encarados por todos como naturais e inevitáveis em uma empreitada de tal magnitude, também porque naquela vila os moradores procuravam sempre ajudar àqueles com dificuldade e atuar e forma a minimizar os efeitos das diferentes habilidades de cada um, ao invés de criar ou incentivar discriminações baseadas nessas diferenças. A despeito disso tudo, porém, e também porque, como todos sabiam, matar um dragão não era tarefa fácil, ainda que se tivesse um plano, a missão daqueles moradores que subiram a montanha e encararam o dragão foi tremendamente mal sucedida. Isso porque, em meio à execução dos procedimentos todos que constituíam a estratégia dos habitantes da vila, todos eles descritos acima, o dragão --- em decorrência, talvez, de algum dos erros também descritos acima, ou de algum outro, ou ainda por outra razão qualquer --- acordou.</span><br />
<span style="background-color: rgba(255, 255, 255, 0);">Os habitantes da vila que haviam resistido à viagem, e se deparado com o dragão, e iniciado os procedimentos que deveriam levar à sua execução --- tais moradores estavam empenhados justamente em tais procedimentos quando tal dragão respirou mais profundamente (matando por combustão meia dúzia de tais moradores), abriu os olhos do tamanho de choupanas e agitou sua enorme cabeça, através de espasmos violentos de seu enorme pescoço (ferindo, por contusão, outra meia dúzia de tais moradores). O monstro agitou suas asas, arremessando ao ar couro, correntes e uma terceira meia dúzia de habitantes daquela vila, e então saltou com um gesto brusco de suas patas traseiras, cujos músculos se demonstraram mais duros mesmo que as próprias rochas da montanha nas quais eram presas as correntes.</span><br />
<span style="background-color: rgba(255, 255, 255, 0);">O salto imediatamente se transformou em voo, mas um voo que nada tinha a ver com o planar tranquilo das águias que giram nos céus aproveitando-se das correntes de vento, se assemelhando muito mais com os mergulhos que essas mesmas águias davam ao avistar, ao longe, suas presas. Assim, o dragão se atirava em fúria contra os habitantes daquela vila que haviam chegado até seu território, todo garras e dentes e chamas, com precisão perfeita e velocidade violenta, e esses moradores, que haviam levado consigo apenas umas poucas armas montanha acima, e de qualquer forma nenhuma delas de fogo, porque o fogo era o elemento do inimigo, lutavam contra ele da forma como podiam, ou então não lutavam, porque não podiam ou porque não queriam fazê-lo, preferindo correr ou se esconder ou contemplar a morte que se impunha contra eles.</span><br />
<span style="background-color: rgba(255, 255, 255, 0);">Metade das pessoas que haviam chegado ao ninho do dragão, e que correspondiam a três catorze-avos da população da vila (se bem que esta, a esta altura, também já havia sido bastante reduzida) havia morrido antes que qualquer dano pudesse ser infligido ao inimigo; outro quarto (ou três vinte-e-oito-avos, ou outra fração qualquer que considere as baixas sobre a população total da vila) morreu quando o dragão ainda parecia simplesmente imbatível. Mas então alguma coisa aconteceu.</span><br />
<span style="background-color: rgba(255, 255, 255, 0);">Com menos inimigos, o réptil, habituado a atacar grandes aglomerados de gente, perdeu eficiência. Ao contrário do que ocorre com predadores como as leoas ou as chitas, o dragão não adotava usualmente a estratégia de seguir uma única presa em meio ao rebanho, mas sim a tática, usada por golfinhos ou tubarões, de juntar uma grande quantidade de animais em um mesmo ponto, cercando-os e encurralando-os, para depois abocanhar um grande número de uma só vez. Isso funcionava bem quando o intuito era conseguir comida na vila, mas trazia dificuldades agora que, movido por um desejo de vingança, ele pretendia aniquilar cada um e todos os indivíduos que haviam chegado até seu ninho.</span><br />
<span style="background-color: rgba(255, 255, 255, 0);">Os moradores da vila ainda morriam ou eram feridos pelo bicho, mas agora, espalhados e escondidos entre árvores e pedras, começou a lhes parecer possível sobreviver. Mais um pouco e algumas daquelas pessoas, primeiro uma e depois outras, mas decerto não todas, se convenceram de que, com algum cuidado, seria possível inclusive atacar o dragão. Assim, saltando de trás de uma pedra com uma faca na mão ou atirando uma seta do topo de uma árvore ou ainda girando alguma corrente pelas costas do bicho, aquelas pessoas começaram a machucá-lo. </span><br />
<span style="background-color: rgba(255, 255, 255, 0);">Quanto mais lhe feriam, mais o dragão se confundia. Não demorou muito, começou a sangrar.</span><br />
<span style="background-color: rgba(255, 255, 255, 0);">A luta foi lenta e o dragão continuava a atacar e ferir e matar pessoas, mesmo enquanto essas tinham algum sucesso em também atacá-lo, e também ferirem-no. Finalmente, restou ao dragão um último suspiro de vida; e restou, ao grupo de moradores da vila que havia subido a montanha e chegado ao ninho e lutado, uma única mulher. Os dois se encararam, um de frente para o outro, o dragão caído ao chão e já com os olhos semicerrados, a mulher assombrada pela enormidade das mortes que havia presenciado, e ambos sabiam o que ia acontecer. Não foi preciso mais que um chute --- um chute sem raiva nem crueldade; um chute que foi apenas o que era preciso --- para que estivesse tudo terminado.</span><br />
<div style="min-height: 14px;">
<span style="background-color: rgba(255, 255, 255, 0);"><br /></span></div>
<div style="text-align: center;">
<div style="text-align: start;">
<span style="background-color: rgba(255, 255, 255, 0);">***</span></div>
</div>
<div style="min-height: 14px;">
<span style="background-color: rgba(255, 255, 255, 0);"><br /></span></div>
<span style="background-color: rgba(255, 255, 255, 0);">Muitas vezes depois disso, a mulher se perguntou se teria sido apenas coincidência. </span><br />
<span style="background-color: rgba(255, 255, 255, 0);">Era possível, claro, que aquela vila fosse protegida por alguma entidade mágica que quisesse demonstrar seu agradecimento à mulher que matou o dragão. Era possível, também, que o dragão guardasse uma última maldição para quem o matasse. Ambas as hipóteses eram possíveis e capazes de explicar o que aconteceu depois. </span><br />
<span style="background-color: rgba(255, 255, 255, 0);">Mesmo assim, nos anos seguintes, ela não pode deixar de pensar que poderia ser só coincidência. Talvez, com ou sem a morte do dragão, ela estivesse mesmo destinada a viver para sempre.</span>Mourãohttp://www.blogger.com/profile/13943568185855686759noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-5209691133652254266.post-59700426293413626752014-05-09T01:50:00.001-03:002014-05-09T01:50:39.018-03:00<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: inherit;">A ideia é extrair o máximo de significação de cada palavra, então ela para e pensa e escolhe os termos mais perfeitos para expressar cada conceito. Ela quer escrever um romance, mas sabe que tantas palavras são um disperdício, uma ofensa ao poder semântico do Signo, então ela faz cortes. Uma novela, um conto, um microconto. 140 caracteres para contar uma vida. </span><span style="font-family: inherit;">Ela quer escrever algo em que cada palavra, cada sinal de pontuação, tenha seu significado máximo.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: inherit;">Cortar. Um microconto de cinco, quatro, três palavras. Sai o artigo, duas palavras pelas quais ela revela sua alma. Ela para, pensa, apaga uma.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: inherit;">Ainda é muito. Respira fundo, relê o texto, elimina a derradeira palavra.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: inherit;">Sobra um ponto: final, único, definitivo.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: inherit;">Perfeito.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: inherit;">.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: inherit;">Ela quer escrever um romance e acha que chegou à essência. Relê, revisa.</span></div>
<br />
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: inherit;">Corta.</span></div>
Mourãohttp://www.blogger.com/profile/13943568185855686759noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-5209691133652254266.post-70097407904232670552014-02-14T20:25:00.000-02:002014-02-14T20:26:33.551-02:00<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "Arial","sans-serif"; font-size: 10.0pt;">Mas se seus sonhos forem grandes --- e se você tiver muito, muito medo</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "Arial","sans-serif"; font-size: 10.0pt;">o suicídio, como hipótese, é um <span class="il">seguro</span> </span><br />
<span style="font-family: "Arial","sans-serif"; font-size: 10.0pt;">de <span class="il">vida</span></span></div>
Mourãohttp://www.blogger.com/profile/13943568185855686759noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-5209691133652254266.post-21526137739697371502014-02-04T08:00:00.003-02:002014-02-04T08:00:59.005-02:00Pulei do primeiro andar --- não morri<br />
tive medo de pular<br />
do sextoMourãohttp://www.blogger.com/profile/13943568185855686759noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-5209691133652254266.post-4948074282280964872014-02-04T00:45:00.001-02:002014-02-04T00:45:19.192-02:00Não é uma questão de medo --- nem de coragem<br />
mas é uma questão:<br />
de liberdade Mourãohttp://www.blogger.com/profile/13943568185855686759noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-5209691133652254266.post-87976604375222804262014-02-03T21:15:00.001-02:002014-02-03T21:15:16.992-02:00Já não fui médico --- nem astronauta<br />
que custaria não ser<br />
poeta?Mourãohttp://www.blogger.com/profile/13943568185855686759noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-5209691133652254266.post-33228143901731262492014-01-31T08:15:00.002-02:002014-01-31T08:15:38.136-02:00Me matei uma vida inteira --- casei<br />
tivesse ficado solteiro<br />
tinha me matado outraMourãohttp://www.blogger.com/profile/13943568185855686759noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-5209691133652254266.post-64920906807775422262014-01-30T08:19:00.004-02:002014-01-30T08:19:54.064-02:00Fui a uma reunião hoje --- quase duas horas;<br />
ao final, a surpresa:<br />
estava duas horas menos vivoMourãohttp://www.blogger.com/profile/13943568185855686759noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-5209691133652254266.post-57626104087341383022014-01-13T19:28:00.000-02:002014-01-13T19:28:28.208-02:00Um adolescente passou quarenta horas no computador --- morreu;<br />
outros estão já há alguns anos<br />
mas seguem vivosMourãohttp://www.blogger.com/profile/13943568185855686759noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-5209691133652254266.post-2723297487532991182014-01-13T08:33:00.001-02:002014-01-13T08:33:09.419-02:00Um homem quis se matar --- proibiram-no:<br />
cortaram-lhe o direito de usar lâminas, o acesso a lugares altos,<br />
o pulso.Mourãohttp://www.blogger.com/profile/13943568185855686759noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-5209691133652254266.post-43593816816113398442014-01-12T18:33:00.000-02:002014-01-12T18:33:03.729-02:00Eu não penso em suicídio --- tenho medo:<br />
posso acabar<br />
morrendoMourãohttp://www.blogger.com/profile/13943568185855686759noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-5209691133652254266.post-70388998615478998722014-01-06T03:15:00.000-02:002014-01-31T08:29:15.862-02:00eu queria ser rico<br />
pra não precisar<br />
queria ser rico pra não precisar ser rico<br />
<br />
eu queria ser rico<br />
pra morar em uma casa<br />
pra morar em uma casa bem pequena<br />
<br />
com um sofá de couro velho<br />
velho e rasgado<br />
e livros velhos guardados<br />
no chão<br />
<br />
e quando me perguntassem<br />
onde está minha empregada<br />
meu carro minha piscina<br />
e quando me perguntassem o que eu ando fazendo da minha vida<br />
eu diria sou rico<br />
sou rico eu diria e não precisoMourãohttp://www.blogger.com/profile/13943568185855686759noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-5209691133652254266.post-43877456786079418972013-12-13T22:54:00.000-02:002013-12-13T22:59:12.840-02:00Sobre as cataratas<span style="background-color: rgba(255, 255, 255, 0);"><span style="font-family: inherit;">Sábado passado a gente foi ao lado brasileiro das cataratas e eu escrevi um relato sobre o passeio de bote e tudo o mais, mas a intermitência da internet da Claro não me deixou postar e agora acho que já não faria sentido. De todo modo, cinco dias depois, finalmente viemos para o lado argentino, completando nossa visita ao Iguaçu. Eu diria que os passeios se complementam e que ambos são obrigatórios, mas é impossível não comparar.</span></span><br />
<span style="font-family: inherit;"><span style="background-color: rgba(255, 255, 255, 0);">Entre outras diferenças, como o trenzinho argentino, muito mais charmoso que os ônibus elétricos brasileiros ("No Brasil, a prioridade é sempre o transporte rodoviário", observou o sujeito no banco da frente), está o tamanho do parque: o de Puerto Iguazu é bem maior que o de Foz e inclui três opções de trilha.</span></span><br />
<span style="font-family: inherit;"><span style="background-color: rgba(255, 255, 255, 0);">A primeira é o Paseo Superior, certamente menos interessante que a trilha brasileira. As cachoeiras são incríveis e é fantástico vê-las de cima, mas a visão panorâmica que se tem do Brasil é mais impressionante. A segunda trilha, o Circuito Inferior, nos levou para mais perto, e é preciso um pouco de nacionalismo para dizer que esta e a brasileira se equivalem.</span></span><br />
<span style="font-family: inherit;"><span style="background-color: rgba(255, 255, 255, 0);">E então, tem a Garganta del Diablo.</span></span><br />
<span style="font-family: inherit;"><span style="background-color: rgba(255, 255, 255, 0);">Se eu tivesse postado meu primeiro relato, vocês saberiam que eu achei que as quedas d'água eram um negócio imensurável, capaz de colocar qualquer coisa em perspectiva. Também saberiam que a coisa que mais me incomodou no parque brasileiro foi a completa ausência de dinossauros (o que é um defeito da maioria dos lugares, na verdade). </span></span><span style="background-color: rgba(255, 255, 255, 0); font-family: inherit;">De um certo modo, foi bom eu não ter conseguido postar ele no dia certo.</span><br />
<span style="background-color: rgba(255, 255, 255, 0); font-family: inherit;">Porque a Garganta do Diabo é um tapa na cara. </span><br />
<span style="background-color: rgba(255, 255, 255, 0); font-family: inherit;">Ela não coloca as coisas em perspectiva, porque você não poderia medir nada nessa escala. Ela não é nem exatamente bonita, porque a nuvem de água que se levanta faz com que seja difícil ver propriamente qualquer coisa. É um passeio em que se anda muito e, ao final, não se sabe bem o que fazer. Mas é um passeio necessário, nem que seja só para se ter a certeza de que algo dessa magnitude realmente existe no mundo.</span><br />
<span style="background-color: rgba(255, 255, 255, 0); font-family: inherit;">Porque as cataratas parecem algo absurdo, impossível, anacrônico. Algo que poderia existir no início de tudo, quando a Terra era nova, mas não hoje. Como disse a Lari: "Aqui é capaz que tenha mesmo dinossauros". </span><br />
<span style="background-color: rgba(255, 255, 255, 0); font-family: inherit;">Deve ter.</span>Mourãohttp://www.blogger.com/profile/13943568185855686759noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-5209691133652254266.post-22268851963657237532013-11-29T01:48:00.004-02:002013-11-29T01:53:54.665-02:00<div style="text-align: justify;">
Hoje, talvez pela primeira vez na vida, eu li, sim, provavelmente pela primeira vez na vida, eu li o obituário no jornal. </div>
<div style="text-align: justify;">
Tinham uns poucos nomes, menos de dez, dois deles sendo enterrados no mesmo cemitério. Tinha uma mulher de oitenta e nove anos e um cara de cinquenta e nove. Um homem que deixou irmã e sobrinhos, uma senhora viúva que deixou bisnetos. A de oitenta e nove só deixou filhos, nenhum neto. Um outro tinha o comentário: amado e incomparável. </div>
<div style="text-align: justify;">
Eu nunca, provavelmente nunca tinha lido um obituário. Eu sabia que existiam obituários, obviamente, porque existem registros de que esse tipo de coisa já existiu um dia (obituários, portanto), mas assim, ao vivo, foi a primeira vez, então eu não sabia como seria a minha reação. Pra falar a verdade, eu nem achava que eu teria uma reação. </div>
<div style="text-align: justify;">
Mas eu tive. </div>
<div style="text-align: justify;">
Eu fiquei triste. Não muito triste, não triste a ponto de chorar, mas suficientemente triste pra perceber que eu estava triste. Suficientemente triste para que essa tristeza se sobressaísse em relação à tristeza cotidiana, que é quase indistinta da alegria cotidiana, essa, por sua vez, uma coisa já meio indefinível. </div>
<div style="text-align: justify;">
Talvez eu tenha ficado um pouco triste por aquelas pessoas. Talvez especificamente pelo sujeito de cinquenta e nove anos, nem sessenta, nem nada. Ou pela octagenária sem netos, que eu imaginei decepcionada com os filhos, aqueles párias, que não legaram a ninguém a nossa miséria. Eu posso ainda, vai saber, ter ficado triste pelo outro, comentado, que foi amado e incomparável, mas agora vai à vala como todo mundo. </div>
<div style="text-align: justify;">
Ou então eu fiquei triste pelo obituário, ele mesmo moribundo; pelo jornal de sina incerta, tendo que se reinventar como pode entre outras tecnologias, pra adiar o inevitável. </div>
<div style="text-align: justify;">
Ou vai ver que era uma tristeza de mim, mesmo, finito como os mortos que eu lia no cadáver de um obituário, no cadáver de um jornal, no cadáver da minha sala de estar.</div>
Mourãohttp://www.blogger.com/profile/13943568185855686759noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-5209691133652254266.post-49747417977966081632013-11-19T01:29:00.002-02:002013-11-19T01:29:13.645-02:00Brigadeiro
<br />
<div align="JUSTIFY" style="margin-bottom: 0cm;">
Estava no ponto da
avenida Luciano Gualberto, esperando pelo ônibus e por uma
oportunidade de tirar meus sapatos e/ou o cinto, que ambos me
apertavam. A tripla espera me desviava a atenção, mas quando o
casal (eu não sei se eram propriamente um casal, porque podiam ser
só duas pessoas andando juntas; gosto de pensar que eram um casal)
quando o casal, eu dizia, chegou oferecendo brigadeiros, eu percebi
que também estava com fome.</div>
<div align="JUSTIFY" style="margin-bottom: 0cm;">
Um dos vendedores de
brigadeiro me estendeu a tigelinha, pedindo dois reais em troca.
Achei caro, mas chequei rapidamente minha carteira: eu tinha dois
reais, eu tinha fome.</div>
<div align="JUSTIFY" style="margin-bottom: 0cm;">
“É um brigadeiro
caseiro, de panela”, ele disse. Não sei se existe outro tipo de
brigadeiro. Talvez ele também tenha pensado nisso, porque
complementou, piscando um olho: “É bem puxadinho”.</div>
<div align="JUSTIFY" style="margin-bottom: 0cm;">
Aquilo foi um <i>trigger</i>.</div>
<div align="JUSTIFY" style="margin-bottom: 0cm;">
Não
foi exatamente desconfiança, mas eu tinha que pensar nas minhas
circunstâncias. É importante, isso aí. CI-RC-UN-ST-ÂN-CI-AS.
Ei-las: ponto de ônibus, vinte e duas horas da noite. Casal
desconhecido vendendo brigadeiro.
</div>
<div align="JUSTIFY" style="margin-bottom: 0cm;">
Lembre-se
do que seus pais diziam. Do que os desenhos animados diziam. De João
e Maria e a casa da bruxa. Por Deus: lembre-se da menina no primeiro
ano SanFran, xingando a Deus e ao mundo no grupo de e-mails da classe
depois de ter comido cinco fatias de brownie batizado no churrasco da
turma.</div>
<div align="JUSTIFY" style="margin-bottom: 0cm;">
E
afinal, o que foi aquela piscadela acompanhando a descrição do
brigadeiro? <i>Bem puxadinho</i>.
Hmmm.</div>
<div align="JUSTIFY" style="margin-bottom: 0cm;">
Imediatamente,
pensei nas toxinas invadindo meu corpo, entrando no meu sangue,
chegando ao meu cérebro. Pensei que se mordesse aquele brigadeiro,
minha cabeça se abriria como um ovo do qual sai uma ave. E então a
ave voaria e seria eu, voando, e o voo seria descontrolado como nos
sonhos recorrentes que tenho, em que dirijo um carro sem freios e com
guidão desregulado. Lutando contra o vento, eu esbarraria nas
pessoas do ponto, no próprio ponto, nas árvores ao redor.
Esbarraria também no poste de luz, mas nele conseguiria um impulso
último, que me arremessaria para o céu aberto da noite paulistana.
E então eu planaria. De lá de cima, veria as pessoas no ponto,
ignorantes do que se passava. Veria o prédio da Letras e a
biblioteca Brasiliana, em frente, e então logo adiante o CRUSP, o
CEPE, as avenidas que levam até a cidade. Se o vento me levasse para
o sul, eu veria o prédio onde trabalho, e ele estaria quase
invisível, à distância, com a maioria das janelas apagadas. Eu
talvez pensasse nas pessoas que mantinham as outras acesas, mas
apenas muito rapidamente, pois meu voo descontrolado já me levaria
para longe dali, para cima do parque, para o momumento às Bandeiras,
uma estátua bonita de um episódio triste. De lá, eu talvez
seguisse para casa, mas não poderia pousar, o vento me impedindo ---
e além disso eu logo imaginaria, sobre a cobertura, caçadores
armados de bestas e espingardas, apontando diretamente para mim. Eu
saberia que nunca mais poderia voltar para lá, que não haveria
segurança, e então eu bateria as asas com força, mas elas já não
seriam as asas de um pássaro. Nesse momento, eu seria um avião
monomotor movido por um combustível desconhecido feito de casca de
eucalipto e urina de elefante. Minha hélice rodaria com potência
incomparável para os aviões movidos a petróleo, mas minha
fusilagem seria fraca demais para aguentar a viagem. Conforme eu
sobrevoasse o interior de São Paulo, e depois o Mato Grosso, e então
a Bolívia, pedaços cada vez menores de metal se desprenderiam de
mim, como um quebra-cabeças ao contrário. Parafusos, pedaços de
lataria, pequenas peças de chumbo (de símbolo Pb e 82 prótons)
cairiam sobre o solo acelerados por uma gravidade dez vezes superior
àquela que normalmente se observa no terceiro planeta do sistema
solar e penetrariam profundas no chão de terra. E de cada um dos
buraquinhos formados pela queda dos meus pedaços, nasceria uma
árvore.</div>
<div align="JUSTIFY" style="margin-bottom: 0cm;">
Eu
pensei nisso tudo enquanto o sujeito pegava o dinheiro da minha mão,
meio sem jeito, e trocava pelo doce.</div>
<div align="JUSTIFY" style="margin-bottom: 0cm;">
“Brigado”,
falou, e eu respondi baixinho, pra ninguém ouvir:</div>
<div align="JUSTIFY" style="margin-bottom: 0cm;">
“Brigadeiro.”</div>
Mourãohttp://www.blogger.com/profile/13943568185855686759noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-5209691133652254266.post-15110958240414213012013-09-13T15:41:00.001-03:002013-09-13T15:41:29.818-03:00Tempo Perdido
<style type="text/css">P { margin-bottom: 0.08in; }</style>
<br />
<div style="margin-bottom: 0in; text-indent: 0.5in;">
Ocorre que, na
vida, algumas coisas são simplesmente imperdoáveis. Assim, fazer um
trabalho ruim é muitas vezes mais fácil do que fazer um trabalho
bem feito, em que se atentou aos detalhes e em que se tentou prever
as mais variantes variáveis etc. No entanto, fazer um café ruim dá
o mesmo trabalho que fazer um café bom.</div>
<div style="margin-bottom: 0in; text-indent: 0.5in;">
Por isso é que
sempre fiz questão de eu mesmo cuidar da moagem dos grãos, da
torra, da passagem da água, ciente e cioso de que não haveria
desculpas para que o resultado final fosse demasiado aguado,
demasiado amargo. Lembro-me de um comentário que me fizeram certa
vez, retificando a tradição popular de que a vida seria curta
demais para café ruim: a vida é, na verdade, extremamente longa, a
coisa mais longa que existe, aliás, e é por isso mesmo que não
devemos tolerá-la sem um bom café.</div>
<div style="margin-bottom: 0in; text-indent: 0.5in;">
<br />
</div>
<div style="margin-bottom: 0in; text-indent: 0.5in;">
No tempo que se
segue, enquanto espero o gotejar desapressado do líquido que passa
pelo filtro e posteriormente enquanto dou goles pequenos e medrosos
(porque tenho medo do calor, mas também porque tenho medo do
fracasso) na bebida recém preparada, me passam pela cabeça os
pensamentos mais variados e eu não me ocupo tanto em controlá-los
quanto em formular as relações que os trouxeram. A lembrança de
meus primos naquele dia, na piscina, talvez tenha derivado de uma
associação entre a temperatura do líquido e o calor tranquilo do
sol que nos embalava despercebido enquanto corríamos, todos
crianças, pela grama. Esquentávamo-nos subindo nas jabuticabeiras e
nos perseguindo, para depois jogarmo-nos na água --- e a última
coisa que eu via, ainda no ar, eram meus primos gritando de alegria,
e então era o frio anestesiando todos os meus poros, abafando todos
os meus sentidos, e então só me sobra o gosto desse primeiro gole
de café.</div>
<div style="margin-bottom: 0in; text-indent: 0.5in;">
Quando abro os
olhos, nada mais está lá: apenas a mesa da cozinha, a luz que entra
pela janela. Puxo uma cadeira e só então me sento. A xícara exala
um cheiro que me lembra da terra e das tardes com minha avó.
Entrávamos ainda molhados pela porta grande da sala, ainda gritando
e correndo, às vezes caindo, e minha avó estava na cozinha com sua
xícara e não ligava para a molhaceira que fazíamos, não ligava
para como a ignorávamos quando ela pedia que tomássemos cuidado
para não escorregar, e então ela esquentava leite na panela e fazia
com toddy pra gente, e às vezes tinha coscorão, também. Então,
sentávamos pingando água nas cadeiras de madeira da cozinha, as
almofadas levantadas para não molhar, e ficávamos vendo os insetos
nas redes da janela enquanto minha avó tomava o café que para mim
simbolizava a idade adulta, o amargo contrastando com o leite doce de
chocolate que bebíamos.</div>
<div style="margin-bottom: 0in; text-indent: 0.5in;">
Quando o sol
começava a descer, nuvens infinitas de siriris voavam como que
brotando do chão e seguiam algum instinto absurdo, atrás de novos
lugares para infestar. A gente começava a andar com mais cuidado,
porque no escuro era mais fácil pisar nas mangas caídas do chão e
completamente tomadas pelas abelhas, as vespas e os marimbondos. E
então o sol mergulhava no horizonte com a vermelhidão de um tiê e
enchia o céu de tons de laranja como em um quadro expressionista e
depois vinha o preto.</div>
<div style="margin-bottom: 0in; text-indent: 0.5in;">
Giro o fundo do
café na xícara e de repente me sinto completamente sozinho. Pela
janela, vejo alguns prédios indistintos e o céu cinzento de São
Paulo, que me traz uma última memória das estrelas da noite no
sítio. Termino o café num último gole, levanto, deixo a xícara na
pia e me deixo sentir por mais algum tempo o gosto bom que sobrevive
na minha boca.</div>
Mourãohttp://www.blogger.com/profile/13943568185855686759noreply@blogger.com2tag:blogger.com,1999:blog-5209691133652254266.post-22408961635136592132013-08-23T02:39:00.002-03:002013-08-23T09:07:43.405-03:00B<br />
<div>
Uma coisa notável, porque eu notei e suponho que muitos de vocês, também, se bem que em outras ocasiões, ou se não notaram notarão agora, espero, uma coisa notável, eu dizia, é o quanto elementos aparentemente pequenos do nosso cotidiano são importantes para a manutenção do nosso estado de satisfação --- e o quanto, mesmo que tentemos ser tolerantes, e já adianto que o sou, mesmo que tentemos ser tolerantes, ligeiras mudanças nesses elementos (os tais pequenos, aparentemente, e cotidianos) são suficientes para gerar todo tipo de transtorno.
</div>
<div>
Vocês talvez tenham percebido --- eu posso ter mencionado uma ou outra vez, mas também isso não importa muito, perceberão agora, se for o caso --- que eu costumo andar de ônibus. De um modo geral, é algo de que eu gosto, então eu pego o ônibus A na Paulista e o horário permite que ele vá rápido e pare em poucos pontos (o motorista também não perde tempo com bobagem e não deixa que faróis e pedestres atrasem minha volta da faculdade) e me deixa muito rapidamente em casa --- rapidamente para um ônibus, é claro, mas acho que é suficientemente rápido para que se possa dizer simplesmente: rapidamente.
<br />
<div>
Em uns poucos, menos de dez, talvez, uns poucos, de todo modo, minutos, portanto, o ônibus A percorre a avenida inteira, uma proeza, acho eu, e então o motorista vira à direita sem reduzir a velocidade um pouco depois da Paraíso e se embrenha em várias curvas até entrar na Rodrigues Alves e disparar rumo à Ana Rosa, cuja parada é simplesmente a mais longa da viagem, se bem que não há nada de simples nisso, porque significa que entram várias pessoas lá e surge o aperto de ter que dividir o banco, ter que dar lugar pra alguém etc. De lá, lá sendo a parada da Ana Rosa, claro está, ele desce em disparada e para na praça quatro quarteirões acima de onde eu moro, então eu pulo do ônibus quase sempre sozinho, ou então com uma ou duas pessoas que vão sempre para o outro lado, o que me deixa caminhar sozinho essas quatro quadras. E é muito bom andar, porque as ruas são muito vazias e silenciosas, não tem comércio nenhum e até o restaurante coreano está fechado, então eu consigo estar completamente comigo mesmo, pensar no que eu quiser, planejar alguma coisa. Então, é quase com decepção, ou seria com decepção se tudo isso não acontecesse tão tarde da noite e eu não tivesse que acordar cedo no dia seguinte, que eu chego em casa.</div>
</div>
<div>
</div>
<div>
Enfim, são essas as coisas que eu faço todo dia, é claro que resumidas e por que não dizer generalizadas, passado imperfeito e tudo o mais, mas suficientes, acho, para que vocês entendam o que eu quero dizer. E o que eu quero dizer é que as menores mudanças nessas coisinhas todas, tão resumíveis e generalizáveis, podem nos deixar em completos apuros.</div>
<div>
</div>
<div>
Vejam vocês, então, que um belo dia, o dia foi ontem, mesmo, mas vai saber quando vocês vão ler isso, então digo logo assim: um belo dia, que pode ser qualquer um, inclusive ontem, exceto que ontem o dia não foi assim tão belo (como se verá), aconteceu algo de terrível.</div>
<div>
</div>
<div>
Pois muito bem, o que houve é que já algumas vezes eu me peguei na Paulista esperando pelo ônibus A, e ele demorando e então passavam os ônibus(es) B e C, ambos exatamente iguais entre si, verdes e tudo o mais, e diferentes do ônibus A, que é laranja e muito mais bonito. Diferentes mas com a similaridade fundamental de descerem até muito perto de casa, embora por outro caminho, a similaridade pragmática de me levarem da Paulista pra casa. Então, um belo dia (ontem), eu estava na Paulista e o A demorava e eu decidi, não assim tão repentinamente como essa frase pode fazer parecer, porque era algo que já me havia passado pela cabeça, enfim, eu decidi que pegaria quem viesse primeiro, A, B ou C, indistintamente. Pois muito bem, evidentemente não foi A: foi B (ou C; não defini muito bem qual seria qual). Fiquemos com B, que vem antes e, ademais, foi minha primeira opção. Foi B. E eu sou um cara de palavra, ou pelo menos fui nesse belo dia de ontem, e entrei no ônibus B sem olhar para trás.</div>
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Mal entrei, me arrependi.</div>
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O ônibus saiu como um búfalo descontrolado, uma força da natureza que partisse em direção a uma cidade sem que os cidadãos pudessem fazer nada: saiu a muitos quilômetros por hora, quase me derrubando no chão antes mesmo da catraca, e ainda por cima mudando de faixas e desviando de quem estivesse no caminho sem consideração alguma pelos passageiros. Sentei como pude, agarrei os braços do assento e me esqueci até de ler, preocupado apenas em chegar vivo. O ônibus era tão bruto, na verdade, ou por que não dizer?, tão vil, que seguiu vazio, vazio, sem nenhuma parada em que se enchesse de gente e utilidade como acontecia com o A.</div>
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E foi assim, vazio, que seguiu até a Vila Mariana e virou não na Rodrigues Alves, mas na Lins, e de lá foi embora sacudindo horrivelmente, atemorizando quem cogitasse atravessar a rua e me jogando pra lá e pra cá.</div>
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Depois de algum tempo, eu levantei e tive que olhar pela janela até determinar o ponto mais adequado para descer, porque não conhecia bem o percurso, que além de tudo me deixaria algumas quadras para baixo de casa, e não para cima, como acontece em A, e então eu temia passar do lugar e me perder na imensidão sombria do Ipiranga. Escolhi um ponto que me pareceu razoável (e era, mesmo) e pulei. Eu e mais ninguém.</div>
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<div>
Achei que o mundo havia se perdido em alguma calamidade temporal: não tinha mais ninguém na rua, nenhum movimento, nada. Todas as lojas estavam fechadas e de luzes apagadas. Naquele silêncio, minha cabeça se enchia de pensamentos, todos eles terríveis, presságios horríveis e projeções pavorosas do que me poderia acontecer ali, sozinho, naquela rua abandonada por Deus. Parecia um cenário de um filme de suspense.</div>
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Andei e ouvi o barulho dos meus passos e achei que aquele lugar era horrível e mal e que eu dificilmente sobreviveria ali por muito tempo. Andei mais rápido. Contabilizei meu patrimônio: um livro, um tablet, um celular. Meus sapatos quase novos. Minha vida, minha virgindade anal. Todo ele em risco, pensei. Andei mais rápido.</div>
<div>
As ruas abaixo de casa são escuras e íngrimes. Andei sozinho por umas quatro ou cinco quadras, virei na rua de casa, toquei involuntariamente no meu bolso, checando o celular. Eu ainda contava os passos quando atravessei a rua, estendi a mão para o portão. Contava os segundos enquanto esperava que o porteiro destravasse a porta. Finalmente, com imenso alívio, e certamente por um golpe de sorte, cheguei em casa inteiro e são e, por que não dizer?, salvo.</div>
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Mourãohttp://www.blogger.com/profile/13943568185855686759noreply@blogger.com0